Lá em cima do piano


Nada poderia fazê-lo supor que algum dia acabaria sozinho. Tudo parecia levá-lo ao amor eterno. Não fosse a decisão dela até hoje estariam juntos.

Sempre que recordava o passado Pedro pensava como tudo poderia ter dado certo. Sentava-se ao piano e tocava todas as músicas que lembrassem dela. Mesmo depois de tantos anos, depois de tantas mudanças ainda era ela que comandava as suas emoções.

Era um bom profissional. Bem empregado e bem remunerado. Casara com outra e tiveram três filhos que já estavam adultos, uma família exemplar. Tudo desaparecia quando começava a tocar.

Conheceram-se no colégio onde nunca foram mais que colegas cordiais. Uma vez foram ao cinema. Nada sério. Quando estava acabando a faculdade foi convidado para uma festa, estava sem companhia. Vasculhando velhos cadernos de telefone encontrou o seu nome. Arriscou ligar. Ela ficou surpresa. Aceitou o convite.

Ela não mudara muito. Não era exatamente bonita. Elegante, delicada, agradável. Dançando beijaram-se. Apaixonados. Tudo muito sem razão. Muito sem querer. Aconteceu.

Com o tempo conheceram-se melhor. Quanto mais se conheciam mais se convenciam que tinham sido feitos um para o outro. Eram vistos como o casal perfeito, nada dava errado para eles. Nunca brigaram. Sempre cultivaram a liberdade do outro. Depois de dois anos de namoro foram morar juntos. Nada afetou a perfeição do lar. Pensaram em se casar, mas não precisavam disso.

Um dia ela chegou e disse que não era mais aquilo que queria. Sem motivos. Não tinha outra pessoa. Não acontecera nada que provocasse a atitude. Ela apenas foi embora.

Pedro passou meses amargurado. Não com ela, com a vida. Ele sabia que se não existisse amor era melhor não haver nada. Sempre fora um idealista. Tornou-se um idealista amargurado. Conseguiu se recuperar, mas nunca a ponto de esquecê-la.

Agora, mesmo com a família, sentia-se sempre só. Casara por interesse, mantinha uma distância suportável da mulher, apenas o suficiente para manter as aparências.

Parou de tocar. Tomou o último gole do vinho que estava em cima do piano e foi dormir.

Comentários

Cristiana Soares disse…
"um idealista amargurado"

Hahahaha... muito bom!

Gostei da história. Mais pessoas vivem assim do que imaginamos. Ontem mesmo vi um filme do Woody Allen, Harry e Sally, que toca exatamente nisso...

AMEI a imagem! Coisa mais linda!
Cristiana Soares disse…
PS: Ôps, desculpem. O nome do filme é "Maridos e Esposas".
Anônimo disse…
Precisa jogar o piano fora, ou aprender a dar conta do que quer...
Anônimo disse…
A imagem é realmente bela...É impressionante como nossas vidas não são tão diferentes da de Pedro. Tenho piano, mas deixei de tocá-lo. Talvez tenha que recomeçar a extrair dele os sentimentos que nos afligem. Só não vou tomar nada que esteja em cima dele, como nas cirandas: "Lá em cima do piano tem um copo de veneno..." lembra? rsrsrsrs.

Beijos.
Anônimo disse…
...um gole de vinho para amansar as memórias e convidar o sono para a cama..sem escolhas agora digo que o Pedro é sábio.
Beijo!
Unknown disse…
bem, bem...tudo muito sem razão,sem motivos, idealista, um sem numero de aparências,(visóes de fora),o que leva a pensar na conveniência de possuir um piano, saborear vinho,(sem pózinhos) e sonhar.

belo texto.

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