Passado a limpo

Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu,
Mes chagrins, mes plaisirs,
Je n'ai plus besoin d'eux!
Michel Vaucaire / Charles Dumont




Quando Armando chegou em casa naquela sexta feira ele estava decidido. Chegara a hora pela qual ele sempre esperara. Não tinha mais nenhum dúvida a respeito.

Entrou no quarto que ele denominava como "quarto da bagunça" e começou a tirar caixas do armário.

Ninguém jamais entendeu porque ele dera esse nome ao quarto onde guardava suas coisas, até porque estava tudo meticulosamente organizado. Armando era tão metódico que ele sabia onde colocara até o recibo da farmácia onde comprara aspirinas há mais de 10 anos.

Armando guardava tudo. Papéis, fotos, recortes de receitas, mas ia além. Numa caixa de madeira dentro de uma das gavetas estava o toco de lápis com que aprendera a escrever, a sua primeira chupeta e até as rodinhas de apoio de sua primeira bicicleta.

Não existia nenhuma fase da vida de Armando que não estivesse representada naquele armário. As que ele não fazia questão de lembrar ficavam nas prateleiras mais altas, no fundo. Até aquele dia.

Armando pegou a escada e foi direto em direção às lembranças que não lhe traziam prazer. No chão ele já tinha colocado grandes sacos de lixo para rececebê-las. Para dentro deles foram sua coleção de bolachas de cerveja, do tempo que vagava de bar em bar. Os cristais, do tempo em que ele quase acreditou em poderes esotéricos para resolver seus problemas.

Olhou incrédulo para sua coleção de revistas pornográficas. Até entendeu porque recorrera a elas, mas não fazia o menor sentido mantê-las.

Ele não se arrependia de nada que tivesse feito na vida. Para o bem ou para o mal, tudo servira para que ele chegasse, finalmente, no ponto em que estava. O que não significava que ele precisasse mais das lembranças do passado.

Reorganizou tudo que era da sua infância. Não jogou fora nada que o lembrasse dos seus pais. Dos amigos, só manteve fotos e cartas daqueles que continuavam a sê-lo depois de todas as dificuldades pelas quais ele passara. Os que não o acompanharam não valiam a pena.

Aproveitou também para se livrar de um monte de roupas que remetiam a essas memórias. Inclusive os sapatos de bocha.

Quando acabou de separar tudo, pegou os sacos repletos de objetos e colocou-os no lixo. Ao chegar limpou o quarto que estava cheio de poeira e foi tomar um banho.

A água pelando acabou de executar a faxina, nem na sua pele sobravam mais resquícios do que jogara fora. Vestiu a roupa nova que comprara naquele dia e foi para a cozinha.

Cozinhou como nunca tivera feito antes. Arrumou a mesa, separou seu melhor vinho e colocou-o na geladeira para refrescar.

Às 9 em ponto a campainha tocou. Era Anita. Com ela, todo dia era o primeiro, todo o dia era único.

Com ela, sua vida não precisava mais das amarras do passado.

Comentários

Arimar disse…
Fábio.
Decidido esse Armando!!!
E viveram felizes e sem amarras, isso é o que vale!
Que doçura de texto... que Armando seja feliz

beijos de sexta feira
Fábio Adiron disse…
Arimar: e como vale.

Vilma: Amém

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